IGOR MENDES -
Rio de Janeiro, 08 de abril de 2015- 126° dia de detenção. Escrito na Penitenciária Bandeira Stampa, Bangu 09, Complexo de Bangu.
Eduardo, uma criança de quatro anos, foi assassinado. Não
poderia ter envolvimento com o tráfico e nem, muito menos, estar ameaçando a
vida do policial que o executou, ou de qualquer outra pessoa. Ainda que fosse
dez anos mais velho e portasse uma pistola, isso não justificaria o homicídio,
porque a legislação brasileira não prevê pena de morte. Eduardo e sua família
foram vítimas de uma chamada “política de segurança” que considera as favelas e
bairros pobres um campo de batalha, e as populações que ali vivem o inimigo a
ser combatido. Há mesmo pouca diferença em relação à doutrina de segurança
nacional que embasou os Golpes Militares na América Latina, e foi o regime
militar brasileiro, aliás, que nos legou uma polícia tão fortemente
militarizada e os famigerados autos de resistência, que o sistema chamado
“democrático” fez questão de preservar. Ocorre que, se antes, elegia-se o
subversivo como o alvo da criminalização, hoje é o pobre o “inimigo interno”,
pelo simples fato de ser pobre.
Todos sabem que os grandes traficantes usam ternos e gravatas
e estão encastelados nas altas esferas do aparato estatal; que o negócio da
droga movimenta bilhões de dólares anualmente, e sua supressão simplesmente
mergulharia a economia mundial em depressão ainda maior que aquela em que se
encontra atualmente; que as drogas não são produzidas nos morros cariocas, como
tampouco ali são fabricadas as armas. Mas quem morre nessa infame “guerra às
drogas”, substituta no cenário mundial da “guerra fria”- afinal os opressores
sempre necessitam de “inimigos”- são os pobres, com baixa instrução,
literalmente pés de chinelo, em grande parte negros. Não existe apenas o
traficante real, singular; criou-se o estereótipo de traficante, o ideal do
“menor”, do “trombadinha”, e esse é um dos aspectos mais odiosos dessa política
de criminalização da pobreza, a justificativa ideológica para o genocídio que se pratica contra a população
das periferias.
Outro subproduto evidente dessa ideologia genocida é o tal
conceito de “bala perdida”. Pegue-se as estatísticas e constatar-se-á que elas
atingem, quase invariavelmente, um tipo específico de pessoas, em territórios
bem delimitados da cidade. Quantas pessoas morrem, anualmente, de “bala
perdida” na Lagoa? Quantas no Complexo do Alemão? Colocada a questão nesses
termos até uma criança concluiria que não existem “balas perdidas”. O que
existe é uma política de Estado. Uma política de criminalização e, mais do que
isso, extermínio da pobreza. Um país fortemente desindustrializado, que viu as
transnacionais aqui instaladas, deslocaram-se, ao longo dos anos 80 e 90 do
século passado, para o sudeste asiático, um país com uma das maiores
concentrações fundiárias do mundo, com um sistema de ensino falido que não
conseguiu sequer se aproximar da erradicação do analfabetismo, não tem muito a
oferecer à juventude cada vez mais marginalizada do processo além de
mendicância, da cadeia ou do cemitério. Trata-se, na ótica do velho Estado, de
uma população excedente que deve ser vigiada, controlada e ceifada, antes que
transborde as estreitas margens que as oprimem.
E a própria droga, ao mesmo tempo em que justifica a
“guerra”, é estimulada porque também atua, ela própria, como um mecanismo
fundamental à dominação. Um instrumento para quebrar a insatisfação e a vontade
revolucionária dos dominados. Um fio histórico invisível liga o ópio ao crack.
Talvez nem tão invisível assim.
Um policial disparou contra o Eduardo, e deve responder
rigorosamente pelos seus atos. Mas não podemos nos contentar com tão pouco. Quando Pezão e Beltrame vão para a TV dizer que
“não recuarão” estão assinando novas sentenças de morte. Quando esse Congresso
Nacional espúrio e imoral que temos cede à pressão de uma imprensa sanguinária,
terrorista e sensacionalista, e encaminha a proposta (inconstitucional) que
reduz para dezesseis anos a maioridade penal, retroalimenta esse ciclo vicioso
que trata as profundas desigualdades que caracterizam nossa sociedade como caso
de polícia, e fatalmente redundará em novos Eduardos, em novos Amarildos.
De modo que a pergunta, aparentemente simples, sobre “quem
matou Eduardo”, revela-se mais complexa do que a primeira vista parece. Muitas
mãos, através de uma longa engrenagem, apertaram esse gatilho. É o Estado
brasileiro, realmente, o seu assassino. Todos os que se calam perante essa
grave situação ou aplaudem, como autômatos, o que vomitam os noticiários
policiais, são seus cúmplices.