4.11.16

POESIAS: CANTO DO MEU CANTO (THIAGO DE MELLO); DIFÍCIL SER FUNCIONÁRIO (JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

CULTURA -
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Canto do meu canto (Thiago de Mello)
Escrevi no chão do outrora

e agora me reconheço:

pelas minhas cercanias

passeio, mal me freqüento.
Mas pelo pouco que sei
de mim, de tudo que fiz,
posso me ter por contente,
cheguei a servir à vida,
me valendo das palavras.
Mas dito seja, de uma vez por todas,
que nada faço por literatura,
que nada tenho a ver com a história,
mesmo concisa, das letras brasileiras.
Meu compromisso é com a vida do homem,
a quem trato de servir
com a arte do poema. Sei que a poesia
é um dom, nasceu comigo.
Assim trabalho o meu verso,
com buril, plaina, sintaxe.
Não basta ser bom de ofício.
Sem amor não se faz arte.

Trabalho que nem um mouro,

estou sempre começando.

Tudo dou, de ombros e braços,

e muito de coração,
na sombra da antemanhã,
empurrando o batelão
para o destino das águas.
(O barco vai no banzeiro,
meu destino no porão.)

Nada criei de novo.

Nada acrescentei às forma

tradicionais do verso.

Quem sou eu para criar coisas novas,
pôr no meu verso, Deus me livre, uma
invenção.

***
Difícil Ser Funcionário (João Cabral de Melo Neto)
Difícil ser funcionário

Nesta segunda-feira.

Eu te telefono, Carlos

Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança
Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar…
Fazer seu nojo meu…








*Reproduzido do site O Pensador