26.5.19

RACISMO NA UNIÃO SOVIÉTICA [VÍDEO]

LUCAS RUBIO -

A arte como poderosa arma política no caótico mundo dos anos 1930.


Como alguns que me seguem no Facebook sabem, eu sou monitor de língua russa para estudantes iniciantes. Nas minhas aulas, não gosto de separar a língua do contexto histórico do país que a usa e isso acaba fazendo com que muitas vezes eu recorra à História da União Soviética.

Na aula de ontem (25), resolvi fazer uma exibição de um filme que vale a pena você parar para ver - «O Circo» (Цирк), de 1936. Depois do filme, fiz com a turma um debate sobre os temas que a obra aborda, afinal, o filme aparenta ser 'leve' e de comédia mas acaba se revelando um profundo registro histórico de uma outra mentalidade de mundo da década de 1930 - a mentalidade do mundo comunista.

Não quero jamais ser acusado de dar spoiler, mas vou comentar bem rapidinho aqui algumas questões do filme.

Esse filme merece sua atenção! Basicamente falando, é um filme da metade da conturbada década de 1930 quando o mundo todo estava em chamas com a ascensão do fascismo e as crises econômicas e uma experiência completamente oposta estava em andamento na URSS - sob o governo de Stalin, os soviéticos experimentavam um crescimento econômico, social, político e intelectual sem precedentes.

No meio de um mundo afogado em leis raciais na Alemanha Nazista, África e Ásia sob as leis coloniais dos países da Europa e a segregação entre negros e brancos vigorando com fervor nos Estados Unidos (o suposto bastião da liberdade, direitos humanos e democracia), a União Soviética nos presenteia com o filme "O Circo" que vai tocar nos temas racismo e machismo.

A trama principal se dá com a artista circense americana Mary Dixon que foge dos EUA de maneira desesperada após ser perseguida por populares por causa de um segredo. Durante a fuga, conhece um empresário alemão que resolve lhe acolher e abafar seu segredo, em troca de um relacionamento abusivo e autoritário. Mary se torna prisioneira do alemão que a todo momento usa o seu segredo como forma de chantagem.

Porém, Mary e o empresário vão para uma turnê em um circo em Moscou, a capital soviética. Lá, Mary se apaixona pelo oficial do Exército Vermelho Ivan Martinov e sua paixão incomoda terrivelmente seu empresário. Mary começa a ter contato com a sociedade soviética e seus diferentes costumes, o que gera uma revolta com sua situação.

Depois de várias indas e vindas no filme, Mary resolve se apresentar no circo com Martinov e seu empresário e amante compulsivo resolve expôr seu segrego ao público do circo buscando humilhá-la. O grande segredo de Mary é que ela tem um filho negro fruto de um relacionamento com um negro. O empresário alemão expõe a situação aos soviéticos denunciando o 'grande absurdo' de uma branca ter um filho negro e o filme simplesmente chuta o pau da barraca ao ridicularizar o personagem racista em uma das cenas mais tocantes que eu já vi. A criança é bem acolhida pelo público, que a protege do empresário que vocifera frases desagradáveis e racistas, e um personagem diz que "na União Soviética, todas as crianças são amadas!". Nessa cena, você não consegue negar que caiu um cisco no seu olho após ver o menino passar pelos braços de diferentes representantes das múltiplas nacionalidades soviéticas que cantam uma canção de ninar em suas respectivas línguas. O alemão sai de cena xingado pelo público.

Mary se liberta de seu relacionamento abusivo, onde sua imagem sensual também estava em um jogo de lucro por parte do empresário, e assume com orgulho uma vida na sociedade socialista soviética baseada na amizade e fraternidade entre todos os povos.

Expondo, ironizando, ridicularizando e reprovando o racismo e o sexismo em pleno ano de 1936, os soviéticos trazem para esse filme apenas uma representação do seu mundo real: no mesmo ano, a União Soviética havia promulgado a primeira constituição estatal do mundo que condenava o racismo. A chamada "Constituição de Stalin" ia muito além em direitos de igualdade das mulheres e das diferentes etnias que formavam a gigantesca URSS.

O filme, além de ter esse complexo e inimaginável plano de fundo político, é recheado de belíssimas canções, principalmente a «Como é Grande a Minha Pátria Natal» - carregando em si tanto o aspecto internacionalista como também o patriótico do socialismo -, como também cenas muito bem feitas e muitos momentos e personagens que conseguem, mesmo após 80 anos de lançamento, arrancar boas risadas.

Como uma grande mãe, a URSS acolheu muitas pessoas de várias partes do mundo que fugiam da opressão em busca de uma vida digna, com trabalho e educação. Não à toa Moscou era chamada de "coração do mundo". Sob os bigodes de Stalin - sem entrar no mérito da discussão de "Stalin assassino ditador" ou "herói" - vários perseguidos encontraram, enfim, sua pátria natal e a tão sonhada paz.

Unindo fatos históricos, realidades sociais muito contrastantes (e frutos da luta de classes e suas contradições) e uma arte muito bem posicionada, o aparentemente inocente filme "O Circo" é uma verdade peça-master para se entender que projeto de mundo e Humanidade se construía na URSS.

No Brasil é possível adquirir o filme no site da CPC UMES (Centro de Cultura Popular da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de SP) que, aliás, restaura e legenda em português diversos clássicos esquecidos e inesquecíveis soviéticos em um belo trabalho. Abaixo segue o filme completo com legendas em inglês para quem quiser assistir de imediato.


*Lucas Rubio - Graduando em Letras com habilitação em Língua Russa pela UFRJ, Presidente do Centro de Estudos da Política Songun-Brasil, Coordenador do Núcleo de Política Internacional da Tribuna da Imprensa Sindical.